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Artigo | Empreendimentos: qual o papel da Funai?

* Por Erika Yamada, Relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas

Durante a Audiência Pública contra a PEC 215, realizada na Procuradoria Geral da República em 26.11.2015, um outro assunto veio à tona: Representantes indígenas do Xingu cobraram enfaticamente o Presidente da FUNAI, João Pedro Gonçalves da Costa, sobre o fato de a hidrelétrica de Belo Monte/PA estar autorizada a operar sem que inúmeras das condicionantes ao empreendimento tenham sido cumpridas.


Foto: Mario Vilela/Funai, Seminário de avaliação do Processo de Licenciamento Ambiental, em Altamira. (site Funai)

De fato, a licença de operação da usina não apresenta salvaguardas necessárias para o componente indígena do licenciamento. Ou seja, conforme denunciado por representantes indígenas e pelo Instituto Socioambiental (ISA), o enchimento do reservatório da hidrelétrica foi autorizado sem haver as condições necessárias para enfrentar os impactos da finalização da obra. De acordo com o ISA:

O exemplo mais gritante dessa situação diz respeito à Terra Indígena Cachoeira Seca. A área aguarda a homologação da Presidência da República e responde por um dos maiores índices de desmatamento do Brasil. Além das invasões de grileiros, a área tem sido palco de saques de exploração ilegal de madeireira sem precedentes.

Em sua resposta para os indígenas, o Presidente da Funai explicou que o licenciamento ambiental de empreendimentos, como o da UHE Belo Monte, não compete à Funai e sim ao Ibama.

Ponderou ainda que as notícias divulgando a “liberação” de empreendimento pela Funai eram tentativas de colocar os indígenas contra o órgão. Explicou que todos os posicionamentos da Funai estão documentados e apontam o não cumprimento das condicionantes por parte da Norte Energia. João Pedro também mencionou a assinatura de um acordo e a constituição de um fundo de multas que teriam sido pagas pela empresa.

O “Termo de Ajuste de Conduta”, que seria uma declaração de que o rumo tomado pela empresa não estava adequado, foi portanto transformado em acordo, do qual infere-se que há uma concordância da Funai, sobre o que está ocorrendo na região. Nas entrelinhas, aos indígenas, o representante maior do órgão indigenista deu a entender que a Funai não poderia fazer nada mais do que fez dentro das suas competências: enviar ofícios e documentar seu descontentamento com o seguimento do licenciamento sem a devida regularização das ações pela empresa.

Nesse mesmo dia – sem a ciência dos indígenas – outra anuência era dada pela Funai. A polêmica linha de transmissão entre as cidades de Manaus (AM) e Boa Vista (RR), que cortará 125km da terra indígena Waimiri Atroari, onde cerca de 1800 indígenas moram em 31 aldeias, havia sido autorizada. De acordo com o jornal o Estado de São Paulo, sem essa manifestação da Funai o Ibama não poderia autorizar o licenciamento ambiental e explica que, “no ofício enviado ao Ibama, o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, procura fazer uma série de ponderações e “alertas” sobre os potenciais impactos do empreendimento aos índios, apresentando condições para que o projeto avance. Na prática, ele libera a obra.

A anuência da Funai foi assinada dois dias após a reunião sobre o assunto entre a Governadora de Roraima e a Presidenta da República.

Mas então, qual o papel da Funai?

De fato, de acordo com a legislação em vigor, não compete à Funai o licenciamento ambiental de empreendimentos. E há um esforço no Congresso Nacional em se acelerar e flexibilizar ainda mais — em favor das empresas — o processo de licenciamento (ver PLS 654).

Contudo, hoje (30.11.2015), em se tratando de obras que impactam terras e povos indígenas, a manifestação técnica e a defesa política dos direitos dos povos indígenas pela Funai é mandatória.

Conforme colocado pela antropóloga e Coordenadora Geral de Licenciamento da Funai, Maria Janete Albuquerque De Carvalho em Seminário sobre Licenciamento Ambiental no mês passado, o tema “povos indígenas-empreendimentos” não é novo, pelo contrário, marca — desde o início — a relação do Estado e seus planos de colonização, ocupação e desenvolvimento com os povos originários.

O que deveria ser novo, portanto, é o olhar de respeito aos direitos e o tratamento dos povos indígenas como legítimos detentores de direitos humanos, especialmente do direito de viverem de acordo com seus modos de vida e visões de mundo em suas terras.

Por isso, para além de constar — e constam — nos pareceres técnicos da Funai todas as ressalvas, alertas e condicionantes, é esperado que a Funai cumpra com a sua missão institucional junto aos demais órgãos e especialmente junto ao Ibama. Em suma, é necessário que, no mínimo:

  1. o processo de licenciamento ambiental do Ibama seja fortalecido — e não flexibilizado — bem como a manifestação da Funai dentro do licenciamento, de modo a evitar catástrofes socioambientais e violações de direitos; e
  2. que a Funai tenha condições de não ceder tão facilmente às pressões políticas anti-indígenas e de continuar atuando em prol da promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas.

Com relação aos casos concretos analisados, seria de se esperar que:

1) as condicionantes colocadas no parecer técnico da Funai fossem consideradas no recente parecer do Ibama, que concedeu a Licença de Operação da UHE Belo Monte;

2) o óbice colocado pelo parecer técnico da Funai para o empreendimento no interior da terra indígena Waimiri Atroari fosse devidamente considerado pelo Ibama, tendo em vista a relevância dos impactos identificados no caso da autorização da linha de transmissão Manaus-Boa Vista;

3) nos momentos críticos de autorizações dos licenciamentos houvesse um esforço político efetivo do governo para garantir medidas governamentais como o próprio fortalecimento da Funai na região de Altamira e a garantia da posse plena das terras indígenas afetadas, a exemplo da homologação da terra indígena Cachoeira Seca; e

4) que o direito de consulta aos povos indígenas não fosse reiteradamente invisibilizado pelo Estado brasileiro.

No caso Waimiri, além do processo de consulta não ter sido nem prévio nem pacifico, todo o processo de autorização da Linha trouxe à tona o conflito advindo da construção da BR 174. Foi no processo desse empreendimento, ocorrido na década de 70, que aquele povo foi quase dizimado. Até hoje os Waimiri Atroari se recuperam dessa ação brutal do Estado Brasileiro. O relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre os Waimiri Atroari e sobre a BR 174 relata como esse povo (e outros) conheceu de perto as práticas da ditadura e ainda convive com esse medo.

O governo brasileiro, a partir da pressão exercida sobre a Funai e seus servidores, sobre os indígenas e respaldando-se em decisões tomadas a partir de critérios estritamente políticos reproduz, em 2015, o temor que ainda está no cotidiano coletivo dos Waimiri Atroari (e outros): o de que eles são inimigos e precisam ser “eliminados”. Apesar da Presidenta da República ser uma das porta-vozes para que aquele tempo não volte mais, percebe-se que, sob seu comando, interesses econômicos e partidários prevalecem em detrimento dos direitos humanos dos povos indígenas. No Brasil, preocupantemente, os povos indígenas ainda são vistos como um obstáculo para o país, ou, pelo menos, para alguns políticos.