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Carta Capital | A vitimização do lobo: a pauta reacionária de Eduardo Cunha

A pauta reacionária de Eduardo Cunha vai do folclórico Dia do Orgulho Hétero ao endurecimento da lei contra o aborto

A estratégia de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, para ascender na política brasileira é cristalina. O peemedebista quer ser o melhor amigo do capital e o pior pesadelo para as minorias. Enquanto seu partido atua para se tornar o fiador do ajuste fiscal e parceiro do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, que sofre oposição do PT, partido da presidenta Dilma Rousseff, Cunha reúne a porção mais obscurantista do Parlamento para desengavetar projetos de lei que atentam contra os direitos de homossexuais e mulheres ou reforçam preconceitos históricos.

Para começar, o deputado promete instituir o Dia do Orgulho Heterossexual, um contraponto ao avanço do que chama de “ideologia gay”, além de propor a criminalização da “heterofobia”, como se héteros fossem vítimas de preconceito.

Cunha também criou uma comissão especial para acelerar a tramitação do Estatuto da Família, que restringe a definição de núcleo familiar apenas à união entre um homem e uma mulher. Na prática, a medida visa impedir a adoção de crianças por casais homossexuais, além de criar embaraços para a oficialização de uniões gays, reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal há quatro anos. De quebra, empenha-se na tramitação da PEC 164, de 2012, que estabelece na Constituição Federal a inviolabilidade da vida “desde a concepção”. A nova redação pode impedir o aborto nos casos previstos em lei (gestações de risco, fetos anencéfalos e vítimas de estupro) e ameaçar as pesquisas com células-tronco.

A velocidade da guinada conservadora no Congresso preocupa os movimentos sociais. Para agravar o cenário, é muito provável que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara volte a ser presidida pelo PSC de Marcos Feliciano ou ainda pelo PP de Jair Bolsonaro. Após a derrota na disputa pela presidência da Câmara, o PT perdeu todos os postos na mesa diretora da Casa. Por isso, os parlamentares petistas devem concentrar esforços para ocupar comissões de maior relevância na estrutura de poder. Além disso, o bloco de Cunha terá a primazia na escolha de três comissões.

“Nem pretendo me desgastar com o lançamento de uma candidatura avulsa para a Comissão de Direitos Humanos, pois a derrota é certa, só daria mais prestígio aos fundamentalistas que devem ocupá-la”, resigna-se o deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, defensor dos direitos LGBT. Na avaliação do parlamentar, a pauta ultraconservadora desvia a atenção pública das recentes benesses concedidas por Cunha aos deputados que o elegeram.

A verba de gabinete, usada para pagar funcionários, foi reajustada em 18%, e passará a 92 mil reais mensais. Os deputados foram autorizados a usar a cota de passagens aéreas para cobrir os gastos de suas esposas. A partir de abril, o auxílio-moradia passará de 3,8 mil reais por mês para 4.243. A área de comunicação da Câmara, hoje controlada por servidores de carreira, será entregue a um deputado do PRB. “Cunha foi citado nas investigações da Operação Lava Jato, mas todo mundo só fala nessa bobagem de Orgulho Hétero”, diz Wyllys.

Na tentativa de preservar a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, a deputada petista Érica Kokay coleta assinaturas para uma petição pública que pede na presidência um parlamentar comprometido com o tema. Está ciente de que a atual legislatura tem um perfil bem mais conservador. Um balanço feito pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar revela que as bancadas ruralista, empresarial e religiosa formam a ampla maioria da Câmara, à custa de um declínio das frentes sindical, de movimentos sociais e de direitos humanos. Mesmo assim, Kokay promete entregar caro a derrota. “É hora de usar todos os recursos regimentais possíveis, lutar por espaços na Câmara e aprofundar as relações com outros segmentos do Estado, como o Ministério Público e o Judiciário”, diz. “A aliança com a sociedade civil também é fundamental para enfrentar os tempos de trevas que se anunciam no Congresso.”

Os movimentos sociais esboçam uma reação. No sábado 21, aconteceu o relançamento da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Minorias. Com a participação dos deputados Wyllys e Kokay, além do padre Júlio Lancelotti e do cartunista Laerte, o ato reuniu em São Paulo mais de uma centena de militantes de direitos humanos preocupados com o “tratoraço” do grupo de Eduardo Cunha. Entre as organizações representadas estavam o Movimento Negro Unificado, o grupo Advogados pela Diversidade, o movimento Mães pela Diversidade, além dos coletivos Arrua e Pedra no Sapato, um dos precursores dos protestos contra Feliciano em 2013, ano em que ele assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. “Naquela época, os fundamentalistas religiosos impediram os movimentos sociais de acompanhar as discussões da comissão. Éramos barrados na porta. Por isso, criamos a comissão extraordinária. E dela surgiram as manifestações contra Feliciano que tomaram o País”, recorda Bruno Maia, do coletivo Pedra no Sapato. Foram dezenas de protestos nas principais capitais e em algumas cidades do interior. Em São Paulo e Brasília, alguns atos reuniram mais de 20 mil manifestantes.

A ideia agora é reforçar a mobilização para evitar novos retrocessos. “Os direitos civis da população LGBT são claramente usados como moeda de troca. As bancadas ruralista e da bala não vão hesitar nem um segundo em entregar nossa cabeça para a bancada evangélica em troca de apoio. E o Executivo permanece ajoelhado em nome da governabilidade”, lamenta a ativista Majú Giorgi, do movimento Mães pela Diversidade. Pelas redes sociais, um novo ato foi convocado para o domingo 1°, no Parque do Ibirapuera, batizado de “Passaço de cadáver de Eduardo Cunha”, em reação a uma das pérolas do deputado: “Aborto e regulação da mídia, só por cima do meu cadáver”. A psicóloga Rosângela Talib, secretária-executiva da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, reforça a necessidade de a sociedade reagir. “Como um presidente da Câmara pode se recusar a pautar um tema? Só por cima do cadáver dele? E os cadáveres de incontáveis mulheres que morreram em abortos inseguros? Essa é uma questão de saúde pública.” Cerca de 1 milhão de brasileiras recorrem a procedimentos clandestinos a cada ano, o que leva à morte de ao menos 250 mulheres. A estimativa é da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, mas não há precisão nos dados. Como a prática é ilegal, inexistem estatísticas oficiais. De concreto, sabe-se apenas o número de mulheres internadas para curetagem pós-aborto, procedimento para limpar a cavidade uterina: 182.666 em 2014, segundo o DataSUS.

Coordenada pela antropóloga Debora Diniz, professora da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, a Pesquisa Nacional do Aborto consultou 2.002 mulheres com idades entre 18 e 39 anos em 2010. Resultado: Uma em cada cinco brasileiras fizeram aborto antes de completar 40 anos. Metade dessas mulheres teve de recorrer ao sistema de saúde por causa de complicações e 8% foram internadas.

A pesquisadora demostra preocupação com a proposta de assegurar a inviolabilidade da vida desde a concepção. “O impacto é trágico: não se faria mais aborto em razão de estupro, em razão de anencefalia no feto ou mesmo para salvar a vida da mulher”, avalia. “Temo pelas famílias que enterrarão suas mães, irmãs, primas, amigas, porque o Estado resolveu que suas vidas nada valem.”

Largadas no meio do campo de batalha pelo poder no Brasil, as minorias vivem situação semelhante dos civis em conflitos no Oriente Médio. Independentemente de quem ataca (exércitos ocidentais ou homens-bomba), no fim são eles que pagam a conta.

AVANÇO CONSERVADOR

Projetos em tramitação no Congresso Nacional

Orgulho hétero

Em 12 de fevereiro, Eduardo Cunha desarquivou o PL 1.672/2011, de sua autoria, que institui o Dia do Orgulho Heterossexual, a ser celebrado no terceiro domingo de dezembro. Na justificativa, ele argumenta que os heterossexuais devem ter o direito de expressar o seu orgulho, até para fazer um contraponto ao que chama de “ideologia gay”.

Heterofobia

O presidente da Câmara também desarquivou o PL 7.382/2010, de autoria própria, que pune a discriminação contra heterossexuais com um a três anos de reclusão. A cada ano, ao menos 200 homossexuais são assassinados no País em virtude de sua orientação sexual. Não se conhece um único caso semelhante de violência contra heterossexuais. O novo presidente da Câmara prefere, porém, transformar a vítima de preconceito em algoz.

Veto à adoção homoafetiva

Cunha criou uma comissão especial para acelerar a tramitação do PL 6.583/2013, o Estatuto da Família. O texto oficializa como família apenas a união entre um homem e uma mulher. O objetivo é impedir que casais formados por indivíduos do mesmo sexo possam adotar crianças.

Fim do aborto legal

Cunha deve empenhar-se na tramitação da PEC 164/2012, de autoria dele e de João Campos (PSDB-GO), que dá nova redação ao artigo 5° da Constituição. Seria estabelecida a inviolabilidade da vida humana “desde a concepção”, o que pode impedir o aborto de bebês anencéfalos ou de vítimas de estupro, além de ameaçar as pesquisas com células-tronco. A PEC aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça.

Bolsa estupro

Cunha também deve acelerar a tramitação do PL 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro. De acordo com o projeto, a mulher que optar por não fazer o aborto legal terá assistência pré-natal, acompanhamento psicológico e ajuda financeira do governo até que a criança seja adotada ou o estuprador seja localizado e obrigado a pagar a pensão pelo filho.

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Por Rodrigo Martins para a Carta Capital.
Texto retirado de ASMETRO-SN