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Por Erika Yamada*

Sentimentos contraditórios marcam este mês de abril. Com muito pouco a se comemorar no Brasil de modo geral e com um cenário político que traz dúvidas sobre o futuro do atual governo, a temática indígena ilustra os efeitos nefastos do acúmulo de barganhas políticas sobre os direitos humanos e exige vigília da sociedade.

Após a votação na Câmara dos Deputados pelo seguimento do processo de impeachment contra a Presidente da República foram aprovados pela Funai quatro Relatórios Circunstanciados de Identificação de Delimitação de terras indígenas e declaradas pelo Ministro da Justiça duas terras indígenas foram para posse permanente e usufruto exclusivo indígena em comemoração ao ‘Dia do Índio’.

Apesar das incertezas quanto à continuidade do governo, as publicações das terras indígenas Ypoi/Triunfo/MS (Guarani Kaiowa), Sawré Muybu/PA (Munduruku), TI Sambaqui/PR (Guarani Mbya) e TI Jurubaxi-Téa/AM  (Arapaso, Baniwa, Baré, Desana, Kuripaco, Nadöb, Pira-Tapuya, Tikuna, Tukano e Tariana) constituem um avanço no reconhecimento e respeito aos direitos indígenas tal como colocados na Constituição Federal de 1988. As assinaturas das Portarias Declaratórias das terras indígenas Kawahiva do Rio Pardo/MT, para a proteção de indígenas isolados, e Estação Parecis/MT complementam tímida e tardiamente um pacote importante de medidas que confere a estes povos indígenas mais segurança na luta por seus direitos e em qualquer cenário que se venha a colocar.

Lideranças e povos indígenas são os primeiros a sentirem – em suas vidas cotidianas – os efeitos dos abusos de poderes, das perseguições e das violências praticadas contra eles, bem como das incoerências políticas (e partidárias) que negaram, violaram e se omitiram em nome de pretensa governabilidade no país. Por isso, ao tempo em que celebramos o avanço das demarcações das citadas terras indígenas, também questionamos quais os motivos reais que fizeram com que esses processos ficassem estacionados na administração pública, ao lado de tantos outros, nos últimos anos. Pressões políticas, interesses eleitorais e posições discriminatórias por parte das instituições marcaram e marcam o quadro de vulnerabilidade em que se colocou a questão indígena no país nos últimos anos.

No caso da terra indígena Sawré Muybu/PA do povo Munduruku, pronta para declaração de limites pela Funai desde 2013, já havia sido amplamente divulgada a correlação dos impedimentos colocados ao órgão indigenista para dar continuidade ao processo de demarcação da terra indígena em virtude dos interesses de governo e, alegadamente, também de interesses de financiamentos de campanhas partidárias envolvendo o empreendimento do complexo de hidrelétricas no rio Tapajós. Esses mesmos interesses impediram que, pelo menos desde 2012, fossem realizadas consultas de boa-fé, adequadamente livres, prévias e informadas com os indígenas sobre a UHE São Luiz do Tapajós e seus impactos sobre os Munduruku dada a urgência de um leilão anunciado que nunca aconteceu.

Destaque-se que hoje são cerca de 30 processos de demarcação de terras indígenas que ainda se mantêm injustificadamente parados nas mesas do Ministro da Justiça e da Presidenta da República, sendo um estímulo para ataques contra as comunidades indígenas. Por exemplo, aguarda-se a declaração das terras indígenas Tupinambá de Olivença/BA, Taunay-Ipeque/MS, Tenodé Porã/SP e Votouro Kandóia/RS e a homologação das terras indígenas Toldo Imbu, Piaçaguera, Piraí, Pindoty e Tarumã/SC, além de Rio dos Índios/RS e a regularização da terra indígena Kondá/RS. Cumpre lembrar que essas paralisações e omissões foram conclamadas em 2012 por políticos, especialmente da região centro-sul, que até então eram chamados de aliados do governo.

Sob semelhantes interesses e pressões, iniciativas legislativas como projetos de leis que preveem a abertura de terras indígenas para a mineração; que excluem a análise dos impactos de empreendimentos sobre terras e povos indígenas; e que criminalizam povos indígenas vêm caminhando a todo vapor no legislativo sem a devida atuação do governo pela defesa dos direitos indígenas. Tal fato também se verifica na CPI contra a Funai e o Incra e na própria proposta de Emenda Constitucional PEC 215 que seguem vivas no Congresso Nacional dando força a bandeiras políticas que se fundam na negação de direitos aos povos indígenas. Mais uma contradição.

Nessa mesma linha – e tal como continuadamente denunciado pelo movimento indígena e pelas organizações de direitos humanos – os discursos de ódio, racismo, violência, proselitismo religioso, abuso de poder e até mesmo de ode à ditadura no Congresso vêm dominando a cena política nos últimos anos e, especialmente, em desfavor dos direitos indígenas no Brasil. Sem uma reação enérgica e à altura pela defesa dos direitos humanos por parte do Executivo e do Judiciário, deputados como Jair Bolsonaro, Luis Carlos Heinze, Alceu Moreira e outros incitam a sociedade à violência e à intolerância e ameaçam aniquilar as conquistas das lutas sociais desde a constituinte.

Por isso, em meio à crise política, ética e de governança que se instalou no país é preciso reconhecer que colhemos os frutos da ganância pelo poder; da falta de discussão de programas de governo ainda durante as eleições; da absurda entrega de ministérios como moeda política; das moralmente incompreensíveis alianças partidárias; das concessões e negociações de direitos – especialmente das minorias; e das trocas de promessas de vantagens entre as elites do poder dentro e fora do governo. A questão indígena mostra as consequências da negligência estatal no enfrentamento de questões estruturantes para o país tais como a reforma política, a reforma agrária e o ordenamento territorial, o combate ao racismo e discriminação tanto na sociedade como nas instituições públicas e a persistente concentração de poder que subjuga modos de vidas diferenciados e relações mais sustentáveis com o meio ambiente. Ou seja, não estamos falando apenas de corrupção.

No momento em que toda a sociedade brasileira questiona seu sentimento de (não) representação numa Câmara de Deputados – cheia de discursos racistas, rasos mas violentos, sexistas, proselitistas e colonizadores-, os povos indígenas possivelmente confirmam o que já prenunciavam em 1987 quando enfrentaram todos os tipos de dificuldades para participarem do processo constituinte: é preciso lutar contra o status quo para garantir reconhecimentos mínimos de seus direitos fundamentais.

No início de abril foi anunciada pela Presidência da República a homologação da terra indígena Cachoeira Seca do Iriri/PA (Arara). Como condicionante para o empreendimento da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, a homologação deveria ter sido implementada antes mesmo de serem iniciadas as obras da UHE, mas sua inobservância fez da Cachoeira Seca a terra indígena mais desmatada do Brasil desde então. Apesar de homologada em 2016, no dia seguinte ao ato presidencial, políticos contrários à demarcação da terra indígena e que compõem a base aliada do Governo Federal já articulavam as possibilidades de judicialização contra a homologação que, consequentemente, poderia acarretar em sua suspensão.

De fato, reconhecimentos meramente formais, sem medidas imediatas de proteção territorial e de garantia da posse plena para os povos indígenas tendem a provocar outras violações de direitos. A omissão do Estado depois de um ato homologatório pode provocar situações de maiores pressões sobre a exploração da terra indígena e dos recursos naturais, além de fomentar situações de conflitos entre grupos sociais na região. Por isso, urge-se que a assinatura do decreto de homologação da TI Cachoeira Seca venha acompanhada de uma ação imediata e efetiva de desintrusão da área, de reassentamento de famílias beneficiárias de programas de reforma agrária, de fiscalização territorial e ambiental, dentre outras medidas por meio da necessária sinergia nas ações dos órgãos fundiários do governo federal.

Ainda neste mês de abril recebemos denúncia a respeito da prisão da liderança indígena Tupinambá, Cacique Babau, bem como de seu irmão Teity em Ilhéus/BA. Esse fato ilustra diversos outros casos de perseguição de lideranças indígenas em curso em todo o país e especialmente nas regiões sul e nordeste e que coloca o Brasil na mira do monitoramento internacional para a garantia da vida dessas lideranças. Importa saber que o cenário de perseguição e ameaça a defensores de Direitos Humanos no Brasil em 2016 é extremamente preocupante posto que, em menos de 4 meses, foram 13 assassinatos, em sua grande maioria envolvidos em conflitos territoriais. De acordo com dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o país tem hoje pelo menos 103 indígenas que necessitam da assistência do Programa de Defensores de Direitos Humanos por terem suas vidas ameaçadas e suas liberdades cerceadas em razão de lutarem por seus direitos e em defesa de suas coletividades.

No que se refere ao orçamento público da União destinado às políticas indigenistas, a avaliação é que o que está ruim tende a piorar com a instabilidade do governo. O corte de 37% no orçamento destinado para a FUNAI e o possível o corte de pessoal ameaçam desmontar essa instituição especializada e que tem um papel chave para a garantia dos direitos indígenas no país. Neste ponto, saltam aos olhos os cortes na área da proteção territorial, cujas atividades são de competência exclusiva do órgão indigenista, como os estudos de identificação e delimitação, a regularização fundiária, a proteção dos povos isolados e de recente contato e a fiscalização e monitoramento territorial, o que claramente impacta o reconhecimento dos direitos constitucionais dos povos indígenas.

Enfim, o mês de abril sinaliza que a garantia de direitos para os povos indígenas no Brasil ainda precisa dar passos largos na direção da defesa dos povos e comunidades tradicionais. No atual contexto de instabilidades e mudanças, mais do que nunca exige-se dos agentes de Estado posturas firmes e éticas em defesa dos direitos constitucionais. É preciso ouvir ao clamor dos povos indígenas que seguem lutando e resistindo com suas vidas por um país mais plural e justo.