Neste artigo publicado pela Carta Maior a Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma Dhesca, Ivanilda Figueiredo, fala sobre as ameaças aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que resultam em particular de iniciativas legislativas que se configuram como retrocessos.
Quem pode o mais, pode o menos
Retirar as mulheres da invisibilidade, tornando-as sujeitos de direitos perante às leis e políticas públicas tem sido uma luta constante do movimento feminista brasileiro há mais de um século. Quando a Constituição de 1988 anunciou, enfim, a igualdade em direitos e obrigações de homens e mulheres poder-se-ia imaginar que as tarefas posteriores iriam se referir a buscar cada dia mais avanços significativos. Hoje, no ano em que a Carta Constitucional adquire maioridade, o cenário é bem diverso. Há riscos de retrocessos imensos.
Se tantas lutas foram travadas para a criação de uma lei contra a violência doméstica, hoje testemunha-se a possibilidade de incremento da violência na medida em que as escolas são proibidas de tratarem de qualquer questão relacionada à temática de gênero.
O Plano Nacional de Educação, assim como inúmeros planos estaduais e municipais, retirou de suas diretrizes qualquer menção a conteúdos de promoção de direitos humanos relacionados a gênero, raça e orientação sexual. Como se não bastasse, inúmeros projetos municipais e estaduais querem censurar qualquer referência ao tema, e mais: há em inúmeros sites religiosos a divulgação de instruções sobre como os pais e mães devem agir para enviar notificações extrajudiciais intimidatórias aos professores que porventura tocarem no assunto em sala de aula. Tais notificações são incentivadas não só por políticos que não reconhecem os limites do Estado Laico, como também por membros do Ministério Público Federal.
Se tantos embates foram necessários para o reconhecimento de que no campo da saúde as mulheres não poderiam ser tratadas apenas como mães e precisariam de reconhecimento legal bem mais complexo acerca de seus direitos sexuais e reprodutivos, hoje há em tramitação inúmeros projetos destinados a dificultar o acesso ao aborto legal, a métodos contraceptivos e as considerações legais das necessidades específicas de mulheres lésbicas, travestis e transexuais.
No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, os retrocessos vêm sendo gestados, por exemplo, por meio de projetos de lei destinados a regular a proteção ao feto que os tratam como sujeitos de direitos garantindo-lhes desde a concepção o direito à vida, à saúde, ao desenvolvimento e à integridade física, ao mesmo tempo em que ignoram os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e tratam o acusado de estupro como genitor responsável pela manutenção da criança, pressupondo, portanto, seu registro como pai e a possibilidade de convivência entre ambos. [PL 478/2007 – substitutivo aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados].
O acesso à pílula do dia seguinte, um método considerado não abortivo pela comunidade científica e, portanto, usado para a prevenção da gravidez, notadamente nos casos de estupro, também está na mira de uma outra proposta: o PL 5069/2013. Nele, dentre inúmeras prescrições que dificultam o acesso à pílula do dia seguinte há especificamente nos casos de atendimento de pacientes vitimas de estupro a seguinte determinação: “nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo”. Apesar de cientificamente o método não ser tido como abortivo, há controvérsia sobre seu uso no seio de comunidades religiosas e, portanto, inúmeros profissionais de saúde possam se recusar a fornecer o remédio às vítimas de estupro por o terem como abortivo.
Todas as ameaças descritas acima se relacionam a um debate sobre o alcance do princípio da laicidade, pois essas propostas têm sido impulsionadas por políticos que desafiam os limites desse principio, defendendo abertamente que valores religiosos possam ser utilizados para a formulação de leis e políticas públicas. A Constituição claramente impõe a separação entre o Estado e as religiões e assegura a liberdade de crença – na qual se inclui o direito de não crer. No entanto, no dia a dia o Estado vem sendo historicamente complacente com a presença de símbolos e a influencia das religiões majoritárias tanto na criação de normas quanto na execução de políticas públicas.
No Brasil, apesar de não ser novidade, essas interferências têm se tornado mais fortes nas duas últimas legislaturas do Congresso Nacional. Feministas e parlamentares aliados/as têm lutado bravamente para frear os retrocessos. Entretanto, há mais perigo na esquina. A aprovação de todas essas propostas precisa apenas de maioria simples pelas Comissões nas quais tramitam e no Plenário, ou seja, no pleno, 127 deputados. Já um processo de impedimento de um Chefe do Executivo Federal necessita para abertura do processo na Câmara do voto de 341 deputados no Plenário. Ademais, é incomparável o custo político-institucional de um processo de impedimento com o da aprovação de uma lei ordinária por mais resistência que haja a ela.
Há no direito uma conhecida expressão utilizada para interpretação das normas que assevera: quem pode o mais, pode o menos. Se o Congresso mais conservador desde 1964, segundo o DIAPE, conseguir aprovar mesmo sem o requisito jurídico mínimo – qual seja, a imputação de crime de responsabilidade – o impedimento da Presidenta, não parece haver outra coisa a se esperar que não seja a sensação de que se podem o mais, também podem o menos. Há, nesta hipótese, uma ameaça real de uma avalanche de aprovações de propostas restritivas aos direitos das mulheres e tantas outras mais destinadas a redução ou extinção dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras, população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, adeptos de religiões minoritárias, população pobre, negra e periférica, movimentos sociais e defensores de direitos humanos, dentre tantos outros que já seria inviável se falar em ameaça às “minorias”.
Ser contra o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff hoje vai muito além da defesa do seu governo. Na verdade, a opinião sobre seu governo é o que menos importa nesse processo. O que está em jogo é a defesa da democracia, das instituições e dos limites de atuação dos parlamentares brasileiros, notadamente na delimitação da linha divisória sobre o que é campo de atuação das religiões e a elas deve estar restrito e o que é campo de atuação do Estado.
Fonte: Carta Maior