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A ESCREVIVÊNCIA DA PANDEMIA

Relatório da inciativa Memória Popular Da Pandemia | 2020-2022

(versão pdf)

Se algo tem se mostrado de suma importância durante os eventos políticos contemporâneos, com uma nitidez maior e mais avassaladora que qualquer outro momento recente, é a relevância de se contar uma história. Temos notado que uma história nunca é apenas uma história, mas que a partir dela é possível desvelar uma série de camadas, sentidos e intenções. É preciso, portanto, observar quem narra a história, como e onde ela chega ao público, quais técnicas são utilizadas, e de quem é a voz autorizada a narrar. Aprendemos, do modo mais difícil, que uma história também é contada a partir daquilo que não está presente na paisagem da narrativa, naquilo que foi excluído, apagado. 

Durante a construção da nação, os povos africanos e seus descendentes na diáspora, bem como os povos originários, foram especialmente vítimas do apagamento de suas narrativas, conhecimentos e memórias. Os movimentos sociais brasileiros buscam, desde então, revelar as hierarquias inscritas nas versões da história contada pelos grupos hegemônicos e recuperar a autonomia na construção de seus próprios relatos. Conceição Evaristo, escritora considerada a maior narradora da diáspora negra no Brasil, cunhou um termo para este movimento: escrevivência. Na escrevivência, vida e narrativa se entrecruzam para contarmos a história dos que foram excluídos da narrativa oficial. 

Inspirades na escrevivência da própria Conceição, uma equipe de relatores e relatoras de direitos humanos da Plataforma DHESCA Brasil criou, em 2020, a Memória Popular da Pandemia (MPP). 

 

“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da Casa Grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”

– Conceição Evaristo

 

A Memória Popular da Pandemia é uma plataforma virtual de registros de relatos, no contexto da pandemia de Covid-19. Nossa ideia era criar um espaço acessível para que todas as pessoas pudessem contar, ouvir, trocar e registrar seus relatos de como a vida estava se passando durante a pandemia. 

Um dos nossos principais objetivos era, justamente, contrapor a narrativa hegemônica que estava surgindo no bojo dos discursos negacionistas e assassinos do Presidente Bolsonaro e seus apoiadores e, para além disso, repensarmos juntes os caminhos possíveis para a superação da difícil realidade brasileira e de construção de um futuro que não seja a “volta à normalidade” – expressa pela exploração, pelo racismo, o machismo, o patriarcado, a lgbtfobia e a desigualdade.

Isso nos exigiu, em primeiro lugar, reconhecer, conhecer e aprender com as experiências, vivências, consciências e subjetividades que emergem no/do tecido social brasileiro. Reforçar, ainda, que a experiência de indivíduos, famílias, coletivos, grupos, movimentos, associações, sindicatos, redes e organizações, das mais diversas, constitui um patrimônio riquíssimo, da memória popular invisibilizada, desde sempre. Que ela é parte considerável do conhecimento e história do povo, em sua diversidade e unidade.                                                

Os caminhos da Memória Popular da Pandemia

Em pouco mais de dois anos, percorremos um caminho de muitos passos.  Da formulação de um site/plataforma digital que pudesse ser acessível para todes até os relatos pós-vacina, uma série de ações se entrelaçaram na construção dessa rede de histórias. O lançamento aconteceu com a presença e a benção de Conceição Evaristo. Depois, abrimos diálogo em várias esferas, buscando acessar a maior diversidade de relatos, consolidamos parcerias, fizemos leituras públicas das escrevivências e ampliamos  o debate sobre o direito à memória. 

Ao perceber a ausência de certas regiões nos relatos coletados, promovemos iniciativas de fomento, voltadas às Organizações da Sociedade Civil, para coleta de relatos que pudessem refletir a diversidade das dimensões regional, racial, cultural e de gênero que compõem a complexidade brasileira. Os relatos colhidos – de estudantes, militantes, ativistas, profissionais autônomos, donas de casa, lideranças religiosas, professores e outres sujeites – contam a história do acirramento das desigualdades durante o período pandêmico, além de demonstrarem as inúmeras estratégias de sobrevivência construídas no interior das comunidades mais atingidas. 

Em meio ao completo abandono público, essas pessoas, em diversidade – homens e mulheres, cis e trans, negres, indígenas, de características e territórios diversos – construíram redes de proteção da vida umas das outras, e denunciaram em seus relatos a escassez de comida, oportunidades, saúde, mas também apresentaram suas resistências, em ações de solidariedade, cuidado e autocuidado, de mobilização social e política, em tempos de pandemia.

 

BALANÇO DA INICIATIVA

Ainda que sem a previsão de ações de fomento e iniciativas similares futuras, por parte da Plataforma DHESCA, a plataforma da Memória Popular da Pandemia permanece ativa e aberta ao fortalecimento das resistências narrativas e estratégias populares nesse contexto, seja para visitas e acessos aos relatos já produzidos ou para a inserção de relatos de suas vivências relacionadas aos impactos da pandemia nas nossas vidas. 

Para acessar as memórias, basta entrar na plataforma e mergulhar nas histórias que expressam os direitos, sentimentos e pautas de brasileiros, brasileiras e brasileires nesse período. São, até o momento, 169 riquíssimos relatos, vindos de pessoas das mais diversas, de 18 estados brasileiros e do Distrito Federal.

 

O site da MPP já alcançou mais de 10 mil acessos de relatos e a navegação da página contou com mais de 5.350 visitas, tendo alcançado um público importante no país, que se interessa e/ou atua no campo da defesa de Direitos Humanos no Brasil. Apesar da plataforma estar em atividade desde julho de 2020, a live de lançamento da MPP foi realizada em setembro de 2021, na Cesta de Direitos – iniciativa do Observatório de Direitos Humanos Crise e Covid-19 – com audiência de mais de 100 pessoas.

O nosso Edital Público de Fomento, que contemplou 10 Organizações da Sociedade Civil das regiões Norte, Centro-Oeste e Sul, recebeu quase 100 inscrições de OSC interessadas. A atividade de Lançamento dos resultados contou com a audiência de mais de 80 pessoas.

Para além desses momentos, diversas ações de comunicação fizeram parte da iniciativa, dentre postagens em redes sociais, cards e vídeos. Foram mais de 60 vídeos sobre a MPP no Youtube da Plataforma Dhesca, com audiência de 1.650 pessoas, até o momento.

Os cinco estados com os relatos mais acessados até então foram Bahia, Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo e Roraima, perfazendo 35,78% do total. Em uma análise mais regionalizada, os relatos do Nordeste são os mais visitados, com 38,86% das visitas, enquanto os da região Centro-oeste ainda são vistos por apenas 1,81% do público.

Para além desse balanço em números, precisamos destacar que a iniciativa inédita da Plataforma DHESCA em construir a Memória Popular da Pandemia, enquanto mais um instrumento de defesa dos Direitos Humanos no Brasil, pretendeu ser um estímulo ao fortalecimento do Direito à Memória, enquanto direito  de um povo ou indivíduo, que precisa ser enxergado em movimento, como processo de  desconstrução e construção, de resgate do passado, compreensão do presente e  pavimentação do futuro.

Ainda que o Direito à Memória não esteja no rol dos principais Direitos Humanos do Sistema ONU, trazê-lo à tona – a partir da abordagem dos Direitos Humanos em uma perspectiva que os entenda como universais, interdependentes e indivisíveis, não de forma hierárquica e engessada – nos aproxima ainda mais do conceito dos DHESCA – Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – tão caro às mais de 49 organizações e articulações da sociedade civil que compõem a Plataforma DHESCA. 

Coloca, ainda, os principais grupos afetados pela pandemia – prioritariamente aqueles mais vulnerabilizades, como pessoas negras; povos indígenas e comunidades tradicionais; mulheres; pessoas LGBTQIA+; trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade; juventudes; defensores e defensoras de DH etc. – como sujeitos de sua própria história e agentes de fortalecimento do Direito à Memória.

“Essa história silenciada, aquilo que não podia ser dito, aquilo que não podia ser escrito, são aquelas histórias que incomodam, desde o nível da questão pessoal, quanto da questão coletiva. A escrevivência quer justamente provocar essa fala, provocar essa escrita e provocar essa denúncia”. 

(Trecho de uma entrevista de Conceição Evaristo sobre o livro, “A Escrevivência: a escrita de nós”.)

Equipe Responsável pela Memória Popular da Pandemia

Relatores/as responsáveis: Isadora Salomão e Udinaldo Francisco
Coordenação da Plataforma DHESCA: Juliane Cintra e Melisanda Trentin
Secretaria e Comunicação da Plataforma DHESCA: Julia Dias, Julia Daher, Lorraine Carvalho e Thiago Teixeira
Representantes de organizações filiadas: Benilda Brito e Rita Brandão