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Escalada de homicídios no Ceará durante pandemia exige mudança urgente da política de segurança pública

Mortes violentas atingem principalmente adolescentes e jovens negros e pobres decorrentes, em grande parte, da ação de agentes públicos e de grupos armados. Crescimento de feminicídios e violência contra crianças e adolescentes revelam o impacto do isolamento social e o acirramento das desigualdades no estado.

O Ceará vive uma escalada de mortes violentas, sobretudo, de adolescentes e jovens entre 12 e 24 anos de idade. Os dados ainda dão conta de mostrar uma curva vertiginosa de casos de meninas. São meninos e meninas, em sua grande maioria, negros (as) que moram nas periferias das mais diversas cidades do Ceará. O problema embora mais grave do que nunca, é continuidade de um processo que percorre a nossa história e pode ser descrito como verdadeiro genocídio da população negra. Mortes que acontecem e são esquecidas, negligenciadas e tratadas como eventos “normais“ pelos poderes executivos, legislativos e judiciário do estado do Ceará.

A crise sanitária decorrente da pandemia do novo Coronavírus (COVID-19) revelou a profundidade da miséria da nossa desigualdade  social e demonstrou o fracasso de políticas de segurança feitas para permitir que pobres e pretos morram, enquanto ricos e brancos permanecem com seus trabalhos e estudos remotos. A vida no Ceará é marcada, diariamente, por oportunidades de viver  e  morrer  delimitadas racial e economicamente para cada segmento social. Ao subalterno, a morte chega tanto pela insuficiência respiratória e falta de atendimento médico, quanto pela arma de fogo dos grupos armados e de policiais que acham normal atirar em áreas residenciais de pessoas negras e pobres.

Dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS) apontam que o número de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) no estado, nos cinco primeiros meses de 2020, aumentou 101% em relação ao mesmo período de 2019. Até o final de maio deste ano, foram contabilizados 1.887 homicídios, representando 83,61% de todas as ocorrências durante o ano de 2019. Além dos assassinatos, várias pessoas se encontram ameaçadas e deslocadas de suas residências em razão da violência e das ameaças sofridas.

Os números ainda podem ser mais graves, pois ainda existe o problema da subnotificação em razão das várias “mortes a esclarecer”. Apenas entre os anos de 2014 a 2018, o número de mortes a esclarecer alcançou a impressionante cifra de 3.841 mortes , tendo aumentado 46,8%, entre o ano de 2014 em relação a 2018.

Os dados de 2019 não estão nos portais do Governo, revelando mais uma grave falta de responsabilidade e transparência no enfrentamento do problema social dos homicídios no estado. Além disso, há uma invisibilidade na base de dados apresentada pela SSPDS em relação a raça, sendo especificados apenas os dados gerais das ocorrências como local, data, hora, sexo e idade das vítimas. Isto impossibilita uma análise dos homicídios na perspectiva de raça que, historicamente, atinge em grande maioria a população negra.

Em 2020, fevereiro foi o mês com maior número de CVLI. Ao todo, foram 459 homicídios, sendo o maior número de ocorrência de mortes violentas no estado desde janeiro de 2018, que registrou 482 . Do total de assassinatos em fevereiro de 2020, 321 aconteceram no período de paralisação dos policiais, entre 18 a 1 de março, uma média de 24,69 mortes por dia. Ao comparar o total de homicídios do mês em relação ao mesmo período do ano anterior, tivemos um aumento de 180% nas ocorrências.

Entre os meses de março e maio de 2020, período de publicação do decreto de isolamento social no Ceará em razão da pandemia, foram registrados 1.163 homicídios, com 582 casos a mais em relação a março e maio de 2019. Isto representou um aumento de 100%, mesmo em um contexto de distanciamento social.

Em relação à faixa etária das vítimas de mortes violentas, observa-se que a juventude continua ocupando os maiores índices. De janeiro a maio de 2020, 798 adolescentes e jovens, de 12 a 24 anos, tiveram suas trajetórias de vida interrompidas, representando 42,29% do total de mortes violentas deste período e um aumento de 138,92% se comparado com os primeiros cinco meses de 2019.

A tendência de crescimento de CVLI também é observada em relação ao gênero. Os dados demonstram que até 31 de maio de 2020, foram contabilizadas 161 mulheres mortas violentamente, caracterizando, em média, 1,06 homicídio por dia. Em 2019, no mesmo período,  o número de homicídios de mulheres foi 87,21% menor, com 86 casos. Em relação a crianças e adolescentes do sexo feminino, de 0 a 18 anos, o crescimento foi de 153,85%, passando de 13 casos em 2019 para 33 em 2020.

Outro dado alarmante, no contexto da violência no Ceará, foi o número de mortes decorrentes de intervenção policial. No mês de abril de 2020, foram contabilizados 35 homicídios em operações policiais, sendo 150% superior ao registrado em abril de 2019. É o maior número registrado nas bases de dados estatísticos publicizadas desde 2013 pela SSPDS. Os registros até o final de maio de 2020 contabilizam 78 mortes, representando 57,35% do total registrado  durante  todo  o ano de 2019.

A ação violenta de agentes do estado causa preocupação sensível porque, entre outras coisas, revela não apenas a incompetência na diminuição da violência como a promoção da violência e da letalidade policial como o meio do fazer “segurança pública” no Ceará.

As mortes por intervenção policial não são consideradas como intencionais, portanto, não aparecem nos registros  mensais  detalha- dos de CVLI, apenas no quantitativo geral do mês. A falta de publicidade desses dados detalhados impossibilita analisar os territórios que ocorreram os homicídios, bem como o perfil por idade e sexo das vítimas. Tal fato colabora com o obscurantismo na gestão pública e a reprodução de uma política autoritária, injusta e criminosa contra pessoas pretas e pobres das periferias urbanas. Em geral, são essas pessoas atingidas pelas balas dos grupos armados e policiais que atualizam o racismo em uma sociedade material e moralmente desigual e violenta com as pessoas pretas e pobres.

Reagir a reprodução do crime e da violência, no Ceará, responsabilizando agentes públicos envolvidos no assassinato de pessoas pretas   e pobres é algo urgente no Ceará. São pessoas que vivem entre o fogo cruzado e veem morrer seus vizinhos e entes queridos todos os dias. Nesta devastadora conta, policiais também morrem, mas também não todos. Apenas os que são colocados por políticos irresponsáveis na “linha de frente”, expostos a violência e a possibilidade de matar uma pessoa em função das ordens que recebem de seus  comandantes. Estes seguem impunes e nunca são levados à justiça para prestar esclarecimentos e muito menos para  serem  responsabilizados  por  suas ordens. Não é mais possível conviver com essa situação e precisamos reagir a esse massacre cotidiano do povo pobre e preto do estado do Ceará.

A violência e o medo que as famílias das periferias têm enfrentado não diz respeito só ao contágio pelo novo coronavírus. São muitas as razões que as impedem de viver dignamente como: o desemprego; a carestia dos itens básicos como alimentação e o não acesso aos serviços básicos de assistência social e saúde, por exemplo. Como se não bastasse, a ação cotidiana do poder público nas periferias chega, de forma mais frequente, a partir da truculência dos agentes de segurança pública com abordagens violentas; invasão de domicílio e violência contra a juventude, além deste aumento exponencial no número de casos de mortes por policiais. Sobreviver neste cenário, para estas populações, é um desafio diário.

Há que se ressaltar ainda que as políticas públicas desenvolvidas para o enfrentamento da epidemia da violência não acontecem a contento. Fortaleza, que tem os mais altos índices de homicídios em nosso estado, tem previsto em seu orçamento anual o “Programa Cada Vida Importa” que tem como objetivo precípuo o enfrentamento aos homicídios, no entanto o que acompanhamos é que, desde a sua implantação no orçamento, a execução é de 0%, além de a previsão orçamentá- ria ter minguado no comparativo entre os anos de 2019 e 2020, reduzindo em cerca de 67,95%, conforme a tabela abaixo:

 

Tabela apresenta a execução orçamentária do Programa Cada Vida Importa de Fortaleza.
Execução Orçamentária do Programa Cada Vida Importa de Fortaleza

Além disso, destacamos, neste período, as políticas estaduais de proteção as pessoas ameaçadas de morte que mantiveram, nos meses mais críticos do aumento no número de casos de homicídios, um funcionamento inadequado, a exemplo do Programa de Proteção a Criança e Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAAM) e o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDH) que ficaram cerca de dois meses sem equipe especializada para o atendimento em razão da transição entre os Convênios.

Diante do contexto apresentado, tornamos público nossa indignação com esse modelo de segurança pública pautada na repressão, que  a cada ano recebe mais recurso para ampliar a sua força bélica e apre- senta como resultado o aumento da letalidade  principalmente  de  corpos negros e favelados. Defendemos e cobramos do poder público medidas efetivas para o enfrentamento de homicídios no Ceará, base- ada no investimento em políticas de prevenção. Diversos pesquisadores, organizações e movimentos sociais demostram como este modelo atual adotado é falho e apontam alternativas para se pensar uma nova política popular de segurança pública. Temos como exemplo as recomendações de 2016 do Comitê Cearense de Prevenção de Homicídios na Adolescência e o documento final das Conferências do Fórum Popular de Segurança Pública do Nordeste de 2019. Defendemos uma política de segurança pública popular para construir alternativas humanizadas e desmilitarizadas. Não podemos pensar em uma política de segurança cidadã sem a participação social, sem o fortalecimento de políticas públicas fundamentais – como educação, saúde, cultura, geração de emprego e renda – que mexem nas estruturas da desigualdade social.

Não aceitaremos o genocídio da população negra do nosso Estado!

Vidas Negras Importam e nossos(as) mortos(as) tem voz!

 

Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará

Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil