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"A situação no Brasil está entre as mais preocupantes", analisa representante do Alto Comissariado da ONU sobre ameaças a defensores ambientais e de direitos humanos

Brasil ocupa 3º lugar em ranking global de assassinatos de defensoras e defensores. Audiência pública na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) colhe denúncias da sociedade civil e emite recomendações ao Estado brasileiro.

Nesta sexta-feira (22), organizações da sociedade civil brasileira denunciaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) o desmonte socioambiental e a escalada de violações, ameaças e perseguições a defensores de direitos humanos e do meio ambiente perpetrados pelo Estado Brasileiro. Na audiência, o representante do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Jan Jarab, alertou para o crescimento das ameaças a pessoas defensoras de direitos humanos na América Latina. “A situação no Brasil está entre as mais preocupantes”, avaliou.

Além do alto volume de assassinatos – foram 164 casos registrados pelo escritório entre 2015 e 2019 – Jan Jarab chamou atenção para outras outras dimensões de risco à proteção de defensores que preocupam as Nações Unidas. Uma delas são as ameaças e agressões: “ainda que não terminem em morte, geram danos para as pessoas defensoras, incluindo a sua saúde física e mental e afetam toda a comunidade de que são parte”, analisou. Segundo o representante, essas ameaças decorrem de invasões massivas de terras e territórios indígenas por grupos envolvidos em mineração e desmatamento ilegal, pela pressão de empresas, sobretudo de mineração e agronegócio, e megaprojetos de infraestrutura.

Como agravante, ele mencionou a implementação de políticas de Estado que favorecem a expansão de atividades econômicas em territórios indígenas. “Cabe mencionar o aberto apoio do governo brasileiro a iniciativas em tramitação no Congresso e que pretendem facilitar essas tendências. Entre outras, gera preocupação a proposta que permitirá ao Brasil retirar-se da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, um claro sinal de que se quer favorecer os interesses econômicos sobre os direitos dos povos indígenas”, alertou. Outro fator destacado foi a debilidade das políticas protetivas de defensores, entre elas, o Programa Nacional de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos. Na avaliação do representante das Nações Unidas, apesar de importante, o programa oferece soluções mais reativas, que não dão conta do cenário de risco, agravado pelo sucateamento de instituições protetivas, tais como a Funai e o Ibama. Jarab criticou também a estratégia anunciada pelo governo na audiência de usar operações militares para conter as invasões ilegais aos territórios. “As forças armadas não estão capacitadas para a proteção do meio ambiente”, “podem, ainda, piorar a situação” e  gerar “riscos para mulheres e crianças”, alertou. Jarab mencionou ainda a existência de processos de criminalização e violência institucional contra defensores – como o PL Antiterrorismo – e a impunidade a mandatários das agressões. “A falta de capacidade e vontade de processar e sentenciar os perpetuadores é uma terrível mensagem à sociedade, de que matar uma pessoa defensora tem menos riscos do que defendê-la”, afirmou.

Assista a íntegra da audiência sobre situação de defensores

Ameaças no Congresso e lacunas no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos

Em complemento a Jarab, os representantes da CIDH presentes – Joel Hernández,  Esmeralda Arosemena e Stuardo Ralon – frisaram que, em conformidade com os parâmetros internacionais, a proteção a defensores de direitos não pode apenas ser reativa, mas deve ter políticas e programas no âmbito da prevenção. Nesse quesito, frisaram a importância de atentar para as causas subjacentes das ameaças e reforçaram a preocupação já exposta por Jarab com PLs lei em tramitação no Congresso. A apreensão com os projetos de lei já havia sido formalizada pela CIDH em 9 de setembro de 2021, quando a comissão emitiu um comunicado à imprensa brasileira sobre o tema.

Na audiência, foram mencionados explicitamente os PLs 490/07 (que restringe a demarcação de TIs), 191/20 (que libera a mineração em TIs), o 3729/04 (que flexibiliza e/ou extingue o licenciamento ambiental de obras e empresas) e o 510/21 (que permite a legalização de terras públicas invadidas até 2014 e a titulação de áreas consideradas latifúndios) e o 4348/19 (que permite ao setor privado apropriar-se de terras destinadas à reforma agrária e a titulação de áreas consideradas latifúndios). Integrantes da CIDH reforçaram também a preocupação de Jarab com o PL Antiterrorista, indagando os representantes do governo presentes sobre sua posição quanto a este projeto de lei, que, por sua vez, desconversaram e não mencionaram o tema.

Na tentativa de se disfarçar a postura de omissão e ataque aos direitos humanos perpetrada pelo governo Bolsonaro, representantes do Estado posicionaram-se buscando exaltar a condução do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PNPDDH) que tem sido feita pela atual gestão. Declararam que o programa encontra-se em expansão e que tem havido uma ampliação de pessoal. Números de sucesso, apresentados fora de contexto e com vista grossa aos altos índices de mortes de agressões, foram contrapostos pela sociedade civil e lidos com desconfiança por membros da CIDH. 

Neste quesito, Stuardo Ralon, um dos representantes da CIDH, solicitou mais detalhes sobre o mapeamento da ampliação das equipes de proteção de defensores do âmbito do programa. Em nome da sociedade civil, Antonio Neto, da Justiça Global e da Plataforma Dhesca Brasil, chamou atenção para a lentidão na implementação e o esvaziamento da participação social. Ele lembrou que, embora criado em 2004, o PNPDDH ainda não atende sequer metade dos estados da federação. Rememorou também que, em 2016, a sociedade civil – fundamental para o acompanhamento e aprimoramento do PNPDDH – foi excluída da gestão do programa.

Antonia Urrejola, também da CIDH, inquiriu o Estado sobre a baixa abrangência do programa. “Um dos estados em que ainda não está implementado é o Amazonas, que é justamente uma região em que a situação é muito preocupante”, analisou. Representantes da CIDH indagaram também o Estado sobre as ações que têm sido tomadas pelo Ministério Público com para investigar ameaças e violações a defensores. Na réplica, o Estado, entretanto, reforçou os pontos exaltados anteriormente e não respondeu à questão.

 

Sociedade civil denuncia escalada de ameaças e violências contra defensores

Representando a delegação brasileira de sociedade civil, Cristiane Faustino, integrante do Instituto Terramar e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, chamou atenção para a postura do governo Bolsonaro de ataque aos direitos humanos e às políticas de proteção ambiental. “[O governo] defende violências e práticas racistas, misóginas e de LGBTfobia; prioriza armas ao invés de saúde e educação; e dissemina ódio a quem defende direitos. Dissecada na CPI da Covid-19 no Senado Federal, a forma como o governo brasileiro gerencia a pandemia, comunga para a triste realidade dos 600 mil mortos pela doença e diz muito sobre como o mesmo percebe a população”, analisou. 

Em sua declaração, Faustino reforçou que proteger e defender a terra, a água, as florestas e os conhecimentos tradicionais faz parte dos modos de vida dessas populações e defendeu que o trabalho feito pelos defensores e defensoras de direitos humanos deve ser referência global no enfrentamento às crises climáticas, dos alimentos, hídrica e outras de caráter humanitários.  

“Qual é lugar dos direitos econômicos sociais culturais e ambientais quando se reduz e restringe drasticamente a participação social, encerra programas ambientais importantes, libera quase mil novos agrotóxicos em dois anos, e nomeia gestores racistas em áreas importantes? Quando se defende projetos de lei para liberação de terras indígenas para mineração e agronegócio, que acaba com o licenciamento ambiental no país, que recusa qualquer titulação coletiva de posse e propriedade? E, ainda, busca retirar o Brasil da Convenção 169 da OIT?”, indagou.

Também em nome da sociedade civil, Antonio Neto, da Justiça Global e da Plataforma Dhesca Brasil, apresentou dados que demonstram a existência de uma escalada de violações, ameaças e perseguições a defensores no Brasil. De acordo com os relatórios da Global Witness, em 2019, foram 24 defensores mortos no Brasil, sendo 10 indígenas. Em 2020, foram registradas 165 mortes de defensores ambientais na América Latina, 20 delas no Brasil. Ainda, segundo dados coletados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de 1323 assassinatos de defensores no mundo entre 2015 e 2019, 933 aconteceram na América Latina e Caribe, e destes, 174 no Brasil. 

“A omissão histórica na proteção das pessoas e coletividades defensoras ambientais hoje se aprofunda numa postura ativa de perseguição e criminalização por parte do atual governo brasileiro, que vem retirando direitos e garantias socioambientais, consagrados na Constituição Federal de 1988 por meio do sucateamento e da militarização de instituições públicas de defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, da alteração e extinção de normas ambientais e conselhos participativos, da omissão na fiscalização e no combate a ilegalidades e crimes e do caráter racista explícito nos discursos e práticas estatais”, analisou Neto.

 Em seguida, Karaí Okaju – Ilson Soares, liderança da aldeia Tekoha Y’Hovy (PR) e da Comissão Guarani Yvyrupa, apresentou a situação de extrema vulnerabilidade em que se encontram os 5.000 Avá Guarani. “Nós, Guarani, também sofremos com a pressão política antiindígena promovida pelo governo federal. Em 2019, inclusive, a demarcação da nossa Terra Indígena Tekoha Guasu Guavira foi tema de uma fala do atual presidente, Jair Bolsonaro, que disse que não seria entregue nenhum palmo de terra a ‘índio’ e que o governo estava do lado dos agricultores.”

Okaju denunciou também os constantes ataques do agronegócio, com formação de milícias e uso de seguranças particulares, e o ingresso massivo de ações judiciais contrárias à demarcação dos territórios Avá Guarani. Okaju relatou ainda as ameaças e violências contra os Avá Guarani. Entre os casos citados, há ataques a facão, tiros e pauladas, e assassinato de lideranças; respondidos pela Justiça com lentidão e negligência no registro e encaminhamento dos casos.

Fechando o bloco da sociedade civil, Anacleta Pires, liderança do quilombo Santa Rosa dos Pretos, alertou para as ameaças e violências em curso contra povos quilombolas. “Em 2014 fui processada e hoje estou passando por mais um momento de criminalização junto a dois companheiros. Lutar pela vida enquanto defensora e defensor de direitos humanos e da natureza é dizer: vidas perseguidas. Quando criminalizam, quando matam uma liderança, matam um quilombo, matam a aldeia, matam toda essa mãe que nos sustenta”, relatou. “Poder ecoar a voz dos quilombolas é dizer: coletividade cura”, completou.

 

Desdobramentos

O evento CIDH ocorreu no contexto do 181º período de audiências públicas, que vem sendo realizado desde 18 de outubro e seguirá até  a próxima sexta-feira (29). Depois de coletar as denúncias, a CIDH deve gerar um relatório sobre o período e emitir recomendações ao Estado brasileiro sobre o tema. É possível, ainda, que a Comissão proponha uma visita ao país para analisar mais a fundo a situação. 

 

Delegação brasileira: 

  • Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)
  • Plataforma de Direitos Humanos Dhesca – Brasil
  • Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
  • Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
  • Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ)
  • Associação dos Produtores Rurais Quilombolas de Santa Rosa dos Pretos
  • Associação Justiça nos Trilhos
  • Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS)
  • Centro de Trabalho Indígena (CTI),
  • Comissão Guarani Yvyrupá (CGY)
  • Comunidades Indígenas Avá Guarani dos Tekoha Guasu Guavirá e Guasu Ocoy Jakutinga
  • Terra de Direitos
  • Justiça Global