A cooptação do Estado por parte das grandes empresas construtoras e corporações do sector mineiro-energético acelera a agonia dos povos indígenas, despossuídos dos seus territórios ancestrais por resoluções governamentais. English Español

Em memória do ex-Ministro de Justiça, José de Alencar
Além de político e advogado constitucionalista, Michel Temer sói escrever poesias, algumas delas publicadas no livro Anônima Intimidade. Antes do atual presidente, outros já tinham se aventurado na arte das letras. Em 1980, o então senador José Sarney passou a ocupar a cadeira n. 38 da Academia Brasileira de Letras, apesar das duvidosas habilidades literárias outrora denunciadas pelo célebre escritor Millôr Fernandes.
Em alguns casos, foram os grandes escritores quem se aventuraram na arte da política. Em 1868, por exemplo, José de Alencar foi nomeado Ministro da Justiça, quando já era considerado o escritor mais importante do romantismo brasileiro. Na Europa, tal movimento artístico se caracterizou pela idealização de personagens medievais. No Brasil, os protagonistas épicos seriam os indígenas e os escravos, descendentes dos africanos. Destarte, a exaltação literária dos referidos povos, conhecida como indianismo romântico, buscou construir a identidade cultural de um país recém emancipado de Portugal.
Cento e cinquenta anos depois da publicação da famosa trilogia indianista de José de Alencar, O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874), tem-se consolidado uma narrativa que, em vez de enaltecer o indígena como um componente indissociável da cultura brasileira, o define como um óbice ao desenvolvimento do país. A expressão mais evidente do anti-indigenismo brasileiro ocorreu no dia 14 de janeiro, com a publicação da Portaria 68/17 do Ministério da Justiça. Elogiada por Temer, tal resolução foi duramente criticada por organizações indígenas e da sociedade civil, as quais consideram que a intenção do governo é convalidar o esbulho territórios tradicionais indígenas, agora através de ofertas de indenização.
De acordo com membros do Conselho Nacional de Política Indigenista, a citada resolução foi adotada de forma inesperada, sem qualquer tipo de diálogo ou consulta prévia, contrariando assim os parâmetros internacionais aplicáveis às decisões estatais que afetam os direitos dos povos indígenas. Após pronunciamento do Ministério Público Federal questionando a legalidade da Portaria 68/17, esta foi substituída pela Portaria 80/17, que mantém os principais dispositivos criticados tanto pelo Ministério Público como pela sociedade civil. Entre outras medidas, a nova resolução cria uma instância política com a faculdade de paralisar e até mesmo reverter processos de demarcação de terras já encaminhados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Até então, a FUNAI era a entidade técnica responsável pela identificação dos territórios indígenas. Agora, tal faculdade poderá ser submetida ao crivo de outros órgãos subordinados ao Ministério de Justiça, impondo assim um filtro político a uma decisão que, em um Estado Constitucional de Direito, deveria fundamentar-se em critérios técnicos.
Cabe esclarecer que o anti-indigenismo não é uma invenção do atual governo. Durante a presidência de Dilma Rousseff, a política indigenista foi submetida aos interesses da “bancada ruralista”, poderosa frente parlamentar composta por grandes latifundiários e empresários do setor agroindustrial. Aliados a estes, congressistas vinculados a setores ultra-religiosos propõem a evangelização como alternativa para a integração dos povos indígenas à sociedade.
A cooptação do Estado por empreiteiras e empresas do setor mineiro-energético acrescentou um componente mais à agonia dos povos indígenas, em cujos territórios se autorizam obras faraônicas, tais como a hidrelétrica Belo Monte, verdadeira anti-joia da coroa de Dilma. Sua herança para os povos indígenas pode ser resumido com uma afirmação de janeiro de 2015, da então Ministra de Agricultura e atual senadora Kátia Abreu: “o Brasil necessita uma reforma agrária pontual, pois o latifúndio deixou de existir no país. Os conflitos pela terra com indígenas ocorrem porque eles saíram da selva a desceram para as áreas de produção”.
Após anos de retrocesso, o atual governo parece disposto a ceder ainda mais às frentes parlamentares que asfixiaram a política indigenista durante o governo Rousseff. A recente portaria do Ministério de Justiça é tão só um exemplo de como os direitos de coletivos historicamente discriminados vem sendo submetidos a interesses corporativos e a posturas conservadoras dos atuais donos da República Federativa do Brasil. Basta mirar a uniformidade étnico-racial e de gênero do volátil ministério de Temer, composto majoritariamente por homens brancos e caciques políticos, dos quais muitos respondem a processos penais por crimes eleitorais. É aqui onde Temer parece inspirar-se muito mais no político-poeta José Sarney que no poeta-político José de Alencar.
* Por Erika Yamada (relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca – mandato 2015-2016) e Daniel Cerqueira para o Open Democracy