A humanidade vive um dos maiores desafios dos últimos tempos. A contaminação pelo coronavírus se mostrou uma ameaça real às formas como nos organizamos politicamente, estruturamos nossas vidas e desenvolvemos nossas relações econômicas. São tempos de reaprender a conviver e nos relacionar com o mundo no qual vivemos. Entre os desafios importantes desse tempo, está a maneira como Estado se comporta para o cuidado e a preservação da vida das pessoas.
Os governos estão desafiados a encontrar soluções para os mais diversos problemas sociais. Entre eles, o cuidado com as milhares de pessoas que, por diferentes motivos, cumprem algum tipo de pena de privação de liberdade em unidades prisionais. Em geral, essas pessoas gozam de pouco ou nenhum reconhecimento social e são tratadas como um problema a ser gerenciado por forças policiais e operadores de justiça. Não obstante, é importante lembrar que são mulheres, homens, pessoas trans, jovens, mães, pais, filhos, irmãs, amigas, pessoas, seres humanos que, por nenhum motivo, podem ser entregues à morte pela contaminação de um vírus. Por isso, manifestamos aqui nossa preocupação com as ações para evitar a contaminação, adoecimento e morte de pessoas que cumprem penas em unidades prisionais brasileiras, repudiando desde já a manutenção do encarceramento nas condições em que hoje ele acontece no Brasil. Tal fato, não é nada menos do que um crime flagrante contra a humanidade, implicando na responsabilização dos envolvidos na produção de uma catástrofe anunciada.
O Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo. São quase 800 mil pessoas vivendo nas penitenciárias de todo o país. É de conhecimento público que a situação das prisões brasileiras está na contramão de todos os postulados de direitos humanos para a garantia mínima da dignidade humana daqueles e daquelas que estão no cárcere: celas superlotadas, privação de atendimento médico e de medicamentos, bem como falta de medicamentos, água tratada, acesso a higiene pessoal e do ambiente. Além de doenças como hipertensão, pneumonia e diabetes, presos e presas vivem em um cenário propício para propagação de todo tipo de enfermidade, como tuberculose, hanseníase e até mesmo sarna (escabiose). Muitos estão em condição de baixa imunidade, em espaços com condições propícias a deflagração rápida de contaminação. O estrago e as mortes que o coronavírus é capaz de promover neste contexto de insalubridade e abandono são imensuráveis.
Em outubro passado, a Plataforma Dhesca realizou a missão emergencial sobre Genocídio Negro e Racismo nas Unidades Prisionais e RUCs de Altamira (PA). Os Relatores de Direitos Humanos foram a campo no Centro de Recuperação Regional de Altamira, palco de um dos maiores massacres da história do sistema prisional brasileiro, e constataram as condições subumanas que os presos ali vivem, sem acesso a saúde e alimentação adequadas, além da insalubridade promovida, entre outras coisas, pela proibição de ventiladores nas celas em um presídio localizado no estado como o Pará. Como foi possível observar, os presos se encontram em celas minúsculas, com condições precárias de ventilação e sem a menor condição para o cuidado de uma epidemia da COVID-19. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o isolamento social é a única medida efetiva hoje para evitar a morte de milhares de pessoas pelo coronavírus. Portanto, cada um dos presos em Altamira ou qualquer outra região do Brasil, atualmente, corre grave e sério risco de morte.
“Nós temos um dever humanitário urgente com nossos companheiros encarcerados: não podemos esquecê-los. Em um sistema superlotado como o brasileiro, a política de controle populacional intra-cárcere tem sido uma política da morte. No massacre em Altamira, relatado pela Plataforma Dhesca Brasil, a morte das 62 pessoas foi tratada, por todo o corpo administrativo, como um alívio no excesso de presos. Nosso medo é que a COVID-19 funcione como mais uma ferramenta da necropolítica carcerária, por meio da qual os seres humanos racializados e privados de liberdade serão mortos no colapso causado pela doença, além disso, tememos que esse genocídio continue sendo tratado como um mal necessário. É urgente que o Estado Brasileiro tome medidas que garantam o direito à saúde dessa população vulnerabilizada.” enfatiza o relator de direitos humanos Udinaldo Francisco.
Medidas de desencarceramento têm sido solicitadas por diversas instituições, como a Rede Justiça Criminal e a Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo, a fim de mitigar a destruição que a combinação entre coronavírus e cárcere irá causar em todo o território nacional. Como resultado dessa mobilização, no dia 23 de março, o ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou que os responsáveis pelos sistemas penitenciários nacional e estaduais informassem, em até 48 horas, quais ações serão adotadas para conter a pandemia do coronavírus. A decisão do STF também determina que as prisões preventivas de mulheres presas que estão grávidas ou que são mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência sejam substituídas por prisões domiciliares. A determinação vale para todo o país.
Entendemos que, diante das medidas desastrosas adotadas pelo governo federal para combater o avanço do coronavírus, a decisão do STF é uma passo muito importante. Porém, ainda não é suficiente para conter a onda de mortes que a pandemia pode causar em todo o sistema penitenciário brasileiro. É preciso ressaltar, também, que a população mais afetada pela precariedade das condições de vida, de acesso a saúde e saneamento básico, dentro e fora das unidades prisionais, ainda é a população negra e pobre. É inaceitável que o Estado brasileiro permaneça omisso a uma situação que exige medidas de proteção à vida e aos direitos das pessoas em privação de liberdade. A ameaça é real e exige medidas urgentes de isolamento social como meio de garantir a sobrevivência de pessoas que estão sob a responsabilidade do sistema de justiça brasileiro. Em muitos casos, existem prisões com pessoas aguardando julgamento ou desfecho de seus processos. Outras estão ali por um tempo determinado e não condenadas à morte. Aceitar a normalidade no funcionamento do sistema é um crime contra a humanidade e não pode ser tolerado como algo “normal” em uma sociedade democrática de direito.