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Velhos e novos discursos de progresso e desenvolvimento: os porões da ditadura e o massacre indígena

O golpe militar foi efetivado em 1º de abril de 1964. Estimativas da Comissão Nacional da Verdade calculam a existência de 300 mil índios no Brasil até 1964, enquanto que em 1968 este número caiu para 80 mil indígenas. O que teria acontecido com 220 mil indígenas em apenas cinco anos?

Um lado ainda oculto da história brasileira é a violência intensa que os povos indígenas sofreram ao longo da ditadura militar: dizimação de etnias, trabalho escravo, cadeias clandestinas, tortura, contaminação com produtos químicos e doenças contagiosas. A dívida histórica do Estado brasileiro vai muito além da morosidade atual da demarcação de terras. Há um passado a ser descortinado. Como diria Cleber Buzatto “a guerra santa do desenvolvimento a qualquer custo, ontem e hoje, continua fazendo milhares de vítimas, em sua grande maioria anônimos, ocultados, enterrados pela história do colonizador, dos interesses dominantes”[1].

A Comissão Nacional da Verdade, apoiada pelo grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo e por organizações indígenas, levantou inúmeras violações no período, as quais podem ser constatadas no Relatório Figueiredo, organizado pelo Procurador Geral à época, Jader Figueiredo Correia, que realizou diversas visitas a regiões de denúncia. O relatório se encontrava desaparecido desde o AI nº 5 de 1968 até o ano passado.

De 64 a 68 o relatório levantou o extermínio de duas tribos Pataxós na Bahia, organizado pelo Serviço de Proteção ao Índio, que estava sobre o comando do Major da aeronáutica Luiz Vinhas Neves desde o golpe. A população morreu por inoculações propositais de varíola, juntamente com doações de açúcar contaminado com arsênico.

Outra população fortemente exterminada para abertura de fronteiras agrícolas nos chamados “vazios” do país foi a dos Cinta-Larga, no Mato Grosso, que resistiram à expulsão pelos militares. Foram metralhados e em suas aldeias foram jogadas dinamites. Uma imagem deste genocídio que rodou o mundo mostra uma indígena presa de cabeça para baixo e cortada a facão ao meio, porque não se desvencilhava de seu filho que havia levado um tiro na cabeça.

Todas estas denúncias estão no Relatório Figueiredo. Um dos casos ganhou destaque na folha de São Paulo de 21/04/68. Na cidade de Noncai (RS) indígenas eram presos em caixas de madeira de 1,30 por 1 metro, sem acesso a banheiro, sendo torturados das maneiras mais severas, como o uso de chicotes.

As violações percorrem o país. Em Minas Gerais, na região da Vale do Rio Doce, foi criado o Centro de Reeducação Indígena Krenák pela Polícia Militar, por volta de 1969, uma verdadeira colônia para uma suposta recuperação por mau comportamento, organizada em parceria com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Inclusive os reeducandos que tinha um “excepcional comportamento” passavam a integrar a guarda indígena, agindo no trato com os demais indígenas não “civilizados”.

Os projetos desenvolvimentistas para a região centro-oeste e norte – como os projetos de integração da Amazônia, Plano Nacional de Integração (PIN), construção de estradas (BR-163 e BR-210) – foram responsáveis pela morte de milhares de indígenas e de diversos deslocamentos compulsórios.

Apenas na construção da Transamazônica, 29 grupos indígenas foram afetados e mais 11 deles foram totalmente isolados. Disso restaram apenas 90 Jiahui, cerca de 700 Teharim, povos que viviam na região de Humaitá, que foram condenados à escravidão nas estradas, acabaram morrendo por exaustão e doenças. Eram comuns nesta região da Amazônia e Acre as chamadas “correrias”, que eram matanças organizadas por agentes públicos de indígenas, algo muito similar às entradas bandeirantes no começo da colonização. Grande parte destas áreas foram posteriormente griladas por empresários. A proposta do governo Médici era que 100 Km ao longo das estradas deveriam ser colonizados com agricultura.

Um caso emblemático são os Waimiri-Atroari, cujas estimativas giram em torno do extermínio de mais de 2 mil indígenas desta etnia. Este povo vivia na região onde fora construída entre 1967 e 1977 a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista. O projeto de era defendido pelo governador do Amazonas, Danilo Areosa, começou em 1968. A obra passaria por dentro do território dos indígenas, que não foram consultados e se opuseram ao empreendimento. Paralelamente, foram iniciadas medidas de “pacificação” dos indígenas, envolvendo padres, mas as tentativas não foram a fundo. Atores sociais que trabalhavam na região, como antropólogos e missionários, foram expulsos, todos impedidos de falar com os indígenas. Em suma, foram a presença de soldados e o uso de armas (metralhadoras, revólveres, dinamites) os principais meios de “convencimento” dos indígenas. Veja o folheto intimidatório da operação militar:

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O sertanista Sebastião Amâncio declara ao jornal o Globo em 1975: “Os Waimiri-Atroari precisam de uma lição: aprender que fizeram uma coisa errada. Vou usar mão de ferro contra eles. Os chefes serão punidos e, se possível, deportados para bem longe de suas terras e gente. Assim, aprenderão que não é certo massacrar civilizados (…) Irei com uma patrulha do Exército até uma aldeia dos índios e lá, em frente a todos, darei uma bela demonstração de nosso poderio. Despejaremos rajadas de metralhadoras nas árvores, explodiremos granadas e faremos muito barulho, sem ferir ninguém, até que os Waimiri-Atroaris e convençam de que nós temos mais força do que eles”[2].

Os civilizados, nas palavras do sertanista, eletrocutaram indígenas Waimiri-Atroari e, segundo relatos coletados pelo indigenista e missionário Egydio Schwade, é possível depreender o uso de napalm nas aldeias: “O que é que civilizado joga de avião e que queima o corpo da gente por dentro?”. “Kamña jogou kawuni (de cima, de avião), igual a pó que queimou garganta e Kiña morreu”. “apiyeme-yekî” (por quê)?”

Em novembro do ano passado a Comissão Nacional da Verdade reconheceu as violações aos direitos humanos do primeiro indígena, José Humberto Costa Nascimento, Tiuré Potiguara, que inclusive foi exilado político no Canadá. Tiuré em seu depoimento relata a escravidão indígena dos Paracatejê, no sul do Pará, que prestaram trabalhos forçados para os militares dos Suruí na região da Guerrilha do Araguaia[3].

A Comissão Nacional da Verdade dedicou um importante espaço as violações aos povos indígenas e deve entregar o relatório final dentro em breve. Mas ainda faltarão muitas minúcias históricas a serem desvendadas. A condenação do Estado brasileiro pelos massacres cometidos aos povos indígenas, seja pela sua omissão ou conivência, passa também pela responsabilização dos violadores pelos crimes cometidos.

E, sobretudo, pelo compromisso de que estes povos que são violados a mais de 500 anos possam dar voz aos seus anseios e fazer parte dos processos decisórios. Isso passa diretamente pelo direito de consulta – entre outros da Convenção nº 169 – e pela percepção de que projetos desenvolvimentistas continuam as violações, sejam eles chamados Belo Monte, seja São Luiz do Tapajós, seja agronegócio.

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Por Tchenna Maso, Assessora da Relatoria do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação
Foto: Edilson Martins

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[1] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509425-waimiri-atroaria-guerra-velada-e-revelada
[2] http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509425-waimiri-atroaria-guerra-velada-e-revelada
[3] http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Pela-1%AA-vez-Brasil-concede-anistia-a-indio-perseguido-pela-ditadura/5/29707